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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Capítulo Oito


Quando cheguei à sala de física, na segunda-feira pela manhã, eu me sentia muito ansioso para ver Lua. A gente não conversava desde aquele papo-furado pelo telefone no sábado à noite, e eu ainda não tinha conseguido sacar o que nos levara a brigar daquele jeito. Falávamos como pessoas normais, mas de repente discutíamos e gritávamos como se fôssemos inimigos em guerra. Ainda não tinha passado a bronca e também não conseguia tirar a briga da minha cabeça.


Lua entrou na sala depois de mim e sentou-se em uma carteira a meu lado. Como havia vários outros lugares vazios, entendi que ela estava com vontade de fazer as pazes.

A sra. Gordon discorria sobre alguma coisa a respeito de atirar moedas do alto do edifício mais alto de Nova York, e aproveitei para rasgar um pedaço de uma folha do caderno. Escrevi em letras de fôrma, bem grandes, "PAZ". (Procurava dar o primeiro passo, mas não tanto a ponto de me desculpar.)

Nos últimos quinze minutos, Lua fizera grandes manobras tentando manter o rosto longe de meus olhos. Tive de cutucá-la com o lápis para entregar o bilhetinho. Ela deu uma olhadela em volta. Quando viu o pedaço de papel, sorriu discretamente. Estiquei o braço, dei um puxãozinho em seu cabelo e entreguei o bilhetinho. De repente me senti como se tivesse tirado um grande peso de cima dos ombros.

Quando o sinal tocou, Lua se levantou e, aproximando-se de mim, colocou a mão em meu ombro.

— Amigos? — perguntou.

Concordei balançando a cabeça e apertando sua mão.

— Sempre.

Quando saíamos da sala, falei com ela.

— Vamos ao Winstead's depois das aulas. Podemos comer umas fritas e lembrar que nós não temos motivo para brigar.

— Boa idéia. Encontro você lá às três horas.

Pérola me esperava no saguão. O bracelete que tinha dado a ela pendia do seu pulso. Dei uma olhada para Lua e vi que tinha um sorriso forçado no rosto.

— Oi, gente — cumprimentou Pérola, olhando para mim.

— Olá, Pérola — respondeu Lua —, que lindo bracelete!

Parecia que Lua falava com sua melhor amiga, e senti um grande alívio ao ver que ela tentava ser gentil com a Pérola.

Pérola segurou o pulso.

— Obrigada, Lua. Foi o Doce Arthur quem me deu. Ela não é mesmo um docinho?

Ela agarrou minha mão e chegou mais perto.

Percebi Lua revirando os olhos. Seus olhos muito castanhos brilhavam, mas não pude compreender exatamente o que se passava em sua cabeça.

— Doce como açúcar — Lua concordou. — Vejo vocês mais tarde, pombinhos.

Enquanto Lua andava rápido pelo saguão, Pérola se esticou e me deu um beijo no rosto.

— Adivinha? - perguntou.

— O quê?

Ainda olhava para Lua, que agora estava com Chay perto da saída de incêndio. Ela ria, e era difícil de acreditar que nós havíamos brigado pelo telefone no sábado à noite.

— Conversei com Carrie Starks. Combinamos de sairmos juntos, ela e Patrick Mayor. Iremos ao baile de sábado à noite todos juntos.

Fiquei preocupado ao me lembrar de como Patrick Mayor se mostrava detestável em ambientes como os bailes da escola. Ele não era uma pessoa com quem eu estivesse morrendo de desejos de me enturmar. Desde que Patrick e Carrie Starks tinham começado a namorar, os dois eram freqüentemente vistos dando um showzinho em público. Não era nada agradável ver aquele robusto jogador de futebol americano socando sua namorada em plena luz do dia. Mas Pérola aparentemente nem percebeu que eu não estava nem um pouco contente.

— Não vai ser legal? — perguntou. — Vamos curtir um bocado juntos! E se eu ficar amiga de Carrie, será um primeiro passo para entrar na equipe das líderes de torcida.

Se ir ao baile com Carrie e Patrick era assim tão importante para ela, por que eu haveria de me preocupar? Afinal, quanto mais contente ela estivesse, mais romântica se sentiria. E bailes são feitos para o romance.

— Vai ser muito legal — respondi, colocando meus braços em volta dela. — Eu topo.

Nós nos separamos na porta da sala onde Pérola teria a próxima aula e depois corri escada acima para a biblioteca, subindo dois degraus a cada passo. Micael e eu estávamos fazendo um trabalho de história e estudávamos também durante o segundo período.

Ele estava em uma mesa bem no meio da biblioteca, rodeado por uns vinte livros dos grandes. Mordia um lápis, compenetrado, e parecia mesmo um estudante muito mais sério do que realmente era.

— Como é, Borges? — cumprimentei, puxando uma cadeira.

— Psiu! Isso é uma biblioteca — disse Micael com o dedo indicador sobre os lábios.

Eu me inclinei para que ele pudesse ouvir o cochicho.

— Como vai o garoto bem-comportado? — perguntei, olhando para os lados para ver se o diretor não estava de olho em nós.

Micael apontou para uma garota na mesa da recepção. Muitos calouros ficam atrapalhados com as normas da biblioteca, mas nunca tinha visto ele se preocupar com isso. A garota tinha cabelos castanhos compridos. Ele se virou para mim.

— Prometi a Rachel que ficaria quieto — confidenciou.

Fiquei surpreso. Teriam seres extraterrestres raptado Micael e colocado um clone em seu lugar? Nunca fora de meu conhecimento que ele se preocupasse em cumprir uma promessa feita a uma bibliotecária.

— E daí?

— Daí que ela é uma garota maravilhosa. Vamos respeitá-la — sussurrou ele, enquanto olhava para mim e para Rachel, que digitava alguma coisa no computador.

Estiquei o braço e coloquei a mão em sua testa.

— Você está com febre? Ou ficou maluco?

Ele empurrou minha mão.

— Vamos fazer o trabalho. Rachel foi muito legal em pegar esses livros para nós. Vamos usá-los.

Apanhei o livro mais próximo e comecei a folheá-lo. Pouco depois, levantei a cabeça para perguntar a Micael como ele gostaria de dividir o trabalho. Ele encarava Rachel com a boca aberta. Acenei, com a mão à frente dos seus olhos, tentando chamar a atenção.

Percebi que ele ficou envergonhado, e um pensamento interessante cruzou minha mente. Ciente do fato ou não, ele tinha se apaixonado pela garota que trabalha na biblioteca.


— O nome dela é Rachel — disse eu a Lua, segurando a porta de vidro do Winstead's. — Ela trabalha na biblioteca.

O Winstead's era um lugar muito legal. Tinha de tudo, de hambúrguer a burritos, apesar de toda a comida ter sempre o mesmo gosto. As mesas eram gastas, e havia uma velha máquina toca-discos automática em um canto. Acho que Lua e eu gastamos metade da nossa vida social nessa lanchonete, principalmente depois que tiramos nossa carteira de motorista. O Winstead's era um local muito popular entre os calouros, que ali costumavam fazer hora, porque dava para ir de bicicleta, já que fica próximo da cidade.

— Rachel Hall? — perguntou Lua, indo direto para sua mesa favorita.

Ficava bem junto ao toca-discos. Lua tinha a tendência de se apossar da máquina e selecionar as músicas enquanto estava por ali.

— Acho que sim. Micael disse que o nome era Rachel. E ele fazia aquela cara de pateta toda vez que dizia o nome dela.

Pendurei nossas jaquetas em um cabide perto da mesa e desabei na cadeira. Tinha sido um dia longo e cansativo.

— Muito interessante. Acho que Rachel não estava na lista do Micael.

Lua abriu o cardápio e tive de esticar o pescoço para ler as palavras de ponta-cabeça.

— Bem, deu para ver que ele tem uma queda por ela.

— Imagino se ela vai querer alguma coisa com ele — argumentou Lua, passando-me o cardápio.

— Vamos dividir uma porção de nachos?

— Puxa, eu estava mesmo a fim de uma porção de nachos, desde que almoçamos aquele sanduíche de atum — concordei.

— De qualquer jeito, eles não parecem que são do tipo nascidos um para o outro. Mas o amor tem seus caprichos.

— Se alguém entende disso, somos nós — concordou Lua.

Ela fez o pedido à garçonete. Depois foi até a máquina e colocou uma moeda.

— Verdade. Quero dizer, há três meses nós dois pensávamos que nunca poderíamos nos apaixonar. E agora veja só.

Sorri para Lua, que retribuiu o sorriso. A garçonete voltou com nosso pedido em seguida. Esses nachos não passam de uma porção de fritas recobertas com molho de queijo. Em um lado do prato se estendia uma fileira de tremoços. Eu poderia jurar que essa porção de nachos do Winstead's era o meu prato predileto.

Lua pegou um punhadinho e colocou na boca.

— Sabe, Arthur, tenho de admitir uma coisa.

— O quê? — perguntei.

— Estou contente de que você me tenha feito concordar com essa aposta idiota. Não sei se teria paquerado o Chay e se estaria com ele agora não fosse a ameaça de ter de sair por aí de loira oxigenada.

— Bem, fico feliz por você estar nessa de garota apaixonada, mas ainda acho que Chay é um panaca.

Comi outra batata, saboreando o queijo derretido.

— Você diz isso só porque quer ganhar a aposta. Não ficaria contente nem um empate?

Sabia que ela não aceitaria nenhum conselho meu, mas enfim não deixara de dar minha opinião. Era o meu jeito de ser.

— Não estou dizendo isso só para ganhar a aposta. Estou sendo totalmente sincero.

— E que você responderia se eu lhe dissesse que Pérola não é uma garota para você?

Uma das músicas que Lua havia selecionado na máquina começou a tocar, e ela se pôs a balançar o corpo, acompanhando o ritmo.

— Eu responderia que não é da sua conta — declarei.

— Pois exatamente.

— Isso quer dizer que não é da minha conta?

— Isso mesmo, adivinhão.

Agitei meu guardanapo como uma bandeira branca.

— Tudo bem.

Ela concordou acenando com a cabeça.

— Pensei que você conseguiria enxergar as coisas do meu ponto de vista.

Lua empurrou o prato de fritas, pegou o copo de água e tomou tudo de um gole só. Vendo a cena, não pude deixar de cair na risada. Ela era realmente uma em um milhão.

Novembro tinha chegado, e o dia 11, sábado, dia do Baile de Boas-Vindas, amanheceu frio mas ensolarado. Na sexta à tarde já tinha preparado tudo para a festa: minha mãe me ajudara a escolher um buquê de rosas vermelhas para Pérola, eu tinha mandado meu único terno para a lavanderia e até mesmo lavara o meu carro. Estava tudo arrumado.

Como Patrick era um jogador e Carrie a líder de torcida, Pérola e eu fomos sozinhos ao jogo. Depois voltaríamos para casa para trocar de roupa, e todos nos encontraríamos por volta das nove horas. Ainda não estava muito contente por ter a companhia de Patrick e Carrie, mas já estava mais conformado com a idéia.

Chegando ao estádio, Pérola quis sentar nas arquibancadas em frente às garotas da torcida.

— Vamos sentar aqui — ela pediu. — Assim podemos ver todos os nossos amigos.

Ela acenou para Carrie, que respondeu chacoalhando um pompom vermelho.

Vi Micael sozinho em um canto e fiz sinal para ele vir se sentar conosco. A expressão de desolação que ele tinha não era normal.

Pérola ficou em pé e deu um abraço nele, que em seguida sentou-se.

— Oi, Micael, como vai?

Ele coçou a cabeça e esfregou o rosto, o que fez as bochechas ficarem vermelhas.

— Para falar a verdade, já estive melhor.

Aparentemente Pérola nem ouviu sua resposta.

— Então, quem você vai levar ao baile?

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Eu não vou ao baile.

— Pensei que você fosse convidar a Rachel Hall — disse eu.

Ele andara criando coragem durante uns dois dias e tinha jurado que ia pedir a Rachel na sexta-feira depois das aulas.

— Eu achei que ela não iria gostar. Ficaria parecendo que eu achava que ela não tinha conseguido um acompanhante.

— Rachel Hall? Aquela garota desajeitada da biblioteca?

Dei uma cutucada nas costelas de Pérola. Ela era bonita e inteligente, mas diplomacia não era o seu ponto forte.

— Eu acho ela uma gracinha — falei. Micael fez que não se importava.

— Acho que Pérola está certa. Afinal o que eu tenho em comum com uma garota que trabalha numa biblioteca?

— Não acho que vai querer sair com ela. Tenho certeza de que você pode conseguir alguém muito mais popular.

— Lua gosta de Rachel — comentei. — Elas estavam na mesma turma de inglês no ano passado, e as duas viviam conversando sobre livros.

Atirei um olhar para Pérola tentando fazer sinal para que ela deixasse Micael em paz. Rachel era a primeira garota por quem ele manifestava interesse, e não me agradava ver Pérola colocando pedras em seu caminho.

— Bem, o fato de Lua gostar não quer dizer muita coisa. Ela não é exatamente a pessoa mais por dentro do que acontece no colégio.

A voz dela era suave, mas as palavras fizeram meu estômago revirar.

— O que você quer dizer?

Quase esquecera que Micael estava sentado perto de nós. Minha atenção total se voltava para Pérola.

— Bem, duvido que Lua seja popular entre a turma do último ano. Ela é legal, mas...

Pérola deixou uma interrogação no ar como se tivesse dito tudo que há para dizer sobre Lua.

— Mas o quê? Lua não fica de papo-furado com a turma por que tem um monte de coisas muito melhores para fazer. Como, por exemplo, dançar. Ou escrever. Ou passar uma parte de seu tempo conversando comigo.

Sabia que soara meio irritado, mas não deu para segurar. Se havia uma coisa que me tirava do sério era ouvir alguém falando mal da Lua. Eu poderia discorrer por horas sobre todas as coisas que ela faz que me perturbam, mas quando alguém falava mal dela eu perdia a linha.

— Desculpe, Arthur. Eu só quis fazer uma simples observação.

Pareceu que Pérola tinha ficado sentida, e na hora achei que talvez tivesse jogado pesado demais com ela. Afinal este é um país livre. Ela podia falar o que quisesse. Além do mais, Lua não precisava que eu a defendesse.

— Desculpe — disse eu, arrependido. — Acho que só estou sendo superprotetor em relação a Lua. Micael sabe o que quero dizer, não é?

Virei-me para a esquerda, esperando que ele confirmasse. Mas ele não estava mais ali. Ainda deu para vê-lo caminhando em direção às numeradas.

— Tudo bem, esquece — disse Pérola, colocando a mão em meu joelho. — Tenho certeza de que a gente pode se divertir bastante com outras coisas e não precisamos ficar falando da Lua.

Concordei em silêncio e coloquei meu braço em seus ombros.

— Concordo plenamente. Vamos falar de nós mesmos.

Enquanto Pérola comentava sem parar de como eu iria gostar de seu vestido de baile, eu olhava disfarçadamente para as arquibancadas.

A nossa direita e algumas fileiras acima, Lua estava sentada com Chay. Eles tinham um grande cobertor xadrez enrolado em volta deles, e não dava para ver se ela e o Cara-de-Panaca (era assim que chamava Chay em meus pensamentos) estavam de mãos dadas. Não que me importasse. Porém, de um ponto de vista social, achava muito interessante observar Lua se comportando de um modo totalmente contrário ao que era normal para ela. Em outras palavras, estava curioso.

Mel Fronckowiak estava sentada atrás deles. Com certeza o cara ao lado dela era o seu par para o baile, mas eles se sentavam a um metro um do outro. Mel tinha uma tremenda cara de pouco-caso, e não consegui segurar a risada. Lua me contara sobre Mel e o sutiã milagroso, e então eu me esforcei para conseguir dar uma boa olhada nela. Pelo que pude ver, parecia igual ao de sempre. Mas também ela vestia um casaco grosso, e por isso anotei mentalmente para conferir mais tarde, durante o baile.

Olhei meio sem querer para Lua. Estava morto de curiosidade para saber o que se passava debaixo daquele cobertor xadrez.

Nessa mesma hora Lua olhou para mim. Ela arregalou os olhos e em seguida desviou o olhar. Senti meu rosto avermelhando. Ela teria achado que eu a estava encarando?

A voz de Pérola cortou meus pensamentos.

— Meu pai disse que hoje posso ficar duas horas a mais do que o normal. Não é legal?

Cheguei mais perto de Pérola e dei um abraço grande e apertado nela.

— Legal! Muito legal mesmo!

— Eu sei. Especialmente porque vai ter uma festinha particular depois do baile e é só para convidados, mas tenho certeza de que vou estar na lista.

Concordei em silêncio, virando meu rosto em direção a Lua. Nossos olhares se cruzaram brevemente e ela se mexeu. O cobertor escorregou do seu colo, e finalmente pude ver que ela e o Cara-de-Panaca estavam mesmo de mãos dadas.

Fechei os olhos imaginando se ela sentia tanto quanto eu que encontrar o verdadeiro amor era assim tão difícil. Por alguma razão achei que no caso dela, não.

Capítulo Sete


Quarta-feira, 1º de novembro

10 horas da manhã

Ontem Chay me convidou para o Baile de Boas-Vindas. Estávamos na festa do Dia das Bruxas na casa de Caroline Sung (eu estava de bruxa e ele, de pirata), e ele me convidou sob a luz negra que criava efeitos especiais no salão. No começo da noite confesso que fiquei aborrecida quando ele passou um tempão me contando como havia sido a festa do Dia das Bruxas no ano passado, quando ainda estava namorando Sophia. Eu não estava com o humor muito bom porque Arthur não tinha aparecido. Ele e Pérola tinham ido à casa de um certo jogador de futebol.

Mas o que importa é que Chay me convidou para o Baile de Boas-Vindas: será minha primeira festa na escola em que terei um namorado oficial. Será que isso significa que estamos apaixonados um pelo outro?

P.S.: Mal posso esperar para contar ao Arthur as novidades. Parece que a gente não conversa há anos.

O inverno chegava. Todos estavam vestindo suas blusas de lã e comentando que podiam enxergar a própria respiração no ar frio fora de casa. À noite, fechei a janela de meu quarto e me perguntei se já era hora de ligar meu cobertor elétrico. Quando fui dar aula para Nina Johnson, nosso espaço passou a ser a sala de jogos no porão, e não mais o jardim. Mel decidiu que podia começar a usar seu Sutiã Maravilha.

Mesmo repetindo a todo instante que essa coisa de baile de escola é muito infantil e idiota, eu ardia de ansiedade pelo momento de entrar no salão tendo o braço de Chay em minha cintura. Via a mim mesma com um pequeno buquê de rosas vermelhas no vestido, brincos de zircônia pendendo sobre os ombros expostos, os tornozelos provocantes rodeados pelas tiras das sandálias de salto alto.

A banda Radio Waves estaria tocando no baile, e por isso eu não poderia ficar muito tempo junto de Chay. Mas eu me sentia feliz sabendo que qualquer uma das garotas no salão se derreteria de ciúmes por saber que era eu quem acompanhava o grande astro.

Na sexta à tarde, Mel e eu fomos ao shopping ver umas roupas. Ela havia concordado em ir ao baile com um dos amigos de Chay, embora não estivesse muito a fim.

— Que tal este? — Mel perguntou.

Ela ria e segurava um vestido de tafetá rosa, com uma blusa balão. Em volta dos ombros tinha desenhos de fadas ou qualquer coisa assim. O vestido era horrível.

— Se eu me vestisse assim, só faltaria me embrulhar em folhas de gibi pra ficar parecendo um chiclete de bola.

Fui olhar em outros cabides e peguei um vestido preto curto. Tinha um bolero com aplicações de contas e era perfeito.

Mel pegou um vestido de seda verde, e então entramos no provador.

— Acho que Arthur e a tal de Pérola estão namorando sério — ela comentou.

Ela estava tirando a blusa de lã, e por isso sua voz saiu meio abafada, mas mesmo assim eu entendi.

Comecei a desamarrar minhas botas pretas.

— Eles irão ao Baile de Boas-Vindas juntos, se é isso que você quer dizer.

Arranquei as botas e tirei as meias pretas grossas, imaginando que elas não combinariam de jeito nenhum com um vestido de baile.

Ellen virou de costas para mim e puxei o fecho do vestido verde. Eu podia dizer que o "auxiliar da natureza", que era como ela chamava o seu Sutiã Maravilha, combinava muito bem com aquele vestido.

— Sim. Sei que eles vão ao baile — minha amiga comentou. — Faz um tempão que o Arthur convidou a Pérola. Mas aquele bracelete que ele deu a ela me parece um bocado caro. Micael Borges me contou que Arthur detonou uma boa parte do dinheiro que ganhou com seu trabalho durante as férias de verão.

Parei o fecho pela metade.

— Que papo é esse? Que bracelete?

Pelo espelho, pude ver Mel levantar as sobrancelhas.

— Você não sabe?

Balancei a cabeça, tentando parecer indiferente.

— Não, acho que ele se esqueceu de me falar sobre isso. Não tem problema.

— Bem, é de ouro com uma opala. Opala é a pedra da sorte dela. Vi o bracelete quando estávamos no banheiro ontem. Aliás, do jeito que ela fazia com as mãos, era preciso ser cego para não ver.

Fiz de conta que não tinha interesse no que ela dizia:

— Hum, não sabia que Arthur era do tipo que apela para coisas como comprar uma pedra da sorte para uma garota. Que coisa mais antiga, papo dos anos 60...

— Tenho certeza de que ele vai comentar com você sobre o bracelete. Vai ver nem teve a chance ainda. — Mel ficou na ponta dos pés para ver qual vestido caía melhor.

— Claro. Tenho certeza de que ele se esqueceu.

Mas eu estava furiosa. Como Arthur tinha deixado de contar uma coisa tão importante quanto essa a sua melhor amiga? E eu tinha certeza absoluta de que ele havia conversado com o Micael sobre o presente, e até mesmo consultado Micael sobre o que deveria comprar. O Arthur nunca foi de dar presentes a suas namoradas, especialmente jóias caras. Quanto a mim, a única coisa que ele algum dia me deu foi um peixinho dourado (que, por sinal, morreu três dias depois).

Afinal era possível que Arthur realmente estivesse amando Pérola. Se isso era verdade, nossa aposta daria em empate. Eu estava certa de que amava Chay. Mas será que o Arthur ia me abandonar, agora que tinha achado alguém melhor que eu? No passado nossa amizade sempre estivera em primeiro lugar. Ele me contava tudo a respeito de tudo que acontecia em seu dia-a-dia, incluindo sua vida amorosa. Agora parecia que ele não estava precisando mais de mim. Talvez eu tivesse de dizer adeus ao meu melhor amigo. Era um pensamento muito deprimente, para dizer o mínimo.

Mel girava em frente aos três espelhos e alisava o vestido de seda na altura do peito. Ela parecia usar pelo menos manequim quarenta.

— Bem, acho que o Arthur namorando a Pérola Faria é um desperdício de um cara legal. Ela é horrorosa.

— Por que diz isso?

Admito que não gostava muito de Pérola. Toda vez que a encontrava ela me ignorava. Porém já estava bem acostumada a receber um gelo das namoradas de Arthur, e isso não me incomodava. Na verdade até que essa atitude delas me fazia bem. Mas ainda estava surpresa por Mel ter essa opinião negativa sobre a última conquista de Arthur.

— Argh. A garota só quer aparecer. Eu a ouvi jogando conversa fora sobre Arthur no banheiro das garotas. Só ficava falando de como ele era bonito, mas não disse uma palavra sobre a personalidade interessante dele, por exemplo. — Ela abriu o fecho e tirou o vestido.

— Verdade? — Eu ainda me olhava no espelho. Por algum motivo, o vestido preto perdera o encanto. Sentia meu estômago se revirando e já não estava com muita vontade de fazer compras.

— Ela disse a Amanda Wright que o Arthur seria o seu bilhete para a popularidade. Como todo mundo o conhecia, ela acabaria sendo reconhecida também. Contou que, quando estava no terceiro ano, era a chefe das líderes de torcida e namorava o quarto zagueiro. Como é possível ser uma pessoa tão superficial?

Segurei o vestido preto e o bolero.

— Você está com ciúmes de Pérola, não está? Quero dizer, sei que você tem uma queda pelo Arthur, mas ele não seria um bom namorado, ele é muito galinha. Acredite em mim, melhor ficar na amizade.

Mel franziu a testa:

— Lua, eu não estou com ciúmes. Você está?

— Não me faça rir — respondi indignada. — Eu nunca sairia com o Arthur para namoro. Já disse isso pra você umas cem vezes.

— Eu sei que você disse. — Mel vestiu os jeans e procurou pelos sapatos. — Mas você nunca me explicou de verdade por que não quer sair com ele.

Suspirei.

— Por uma razão muito simples. Eu estou com o Chay. E, mesmo que não estivesse, Arthur e eu não fomos feitos um para o outro.

— Continue explicando — ela pediu, levantando as sobrancelhas e olhando para mim.

— Ele é como um irmão para mim, não sabe assumir um compromisso, é arrogante, gosta de outros sabores de sorvete de que eu não gosto, e sempre temos brigas idiotas para ver quem fica com o controle remoto da TV.

Eu sabia que era só conversa inconseqüente, mas a cutucada de Mel me pegou de jeito. Falar de Arthur desse modo tão pessoal me deixava encabulada.

Mel riu.

— Bem, posso ver que vocês formam uma dupla e tanto. Desisto deste papo. Sei que você detesta falar sobre o Arthur.

— Obrigada. Agora vamos sair logo daqui. Não estou encontrando o vestido que queria.

Enquanto saíamos da loja, tentei ignorar a sensação de enjôo. Ainda não podia acreditar que o Arthur não me dissera nada sobre o tal bracelete. Assim que cheguei em casa, telefonei para ele. Arthur teria de me explicar um monte de coisas.


Enrolava o fio do telefone no dedo indicador, enquanto esperava que alguém atendesse a ligação na casa de Arthur. Ao terceiro toque, ouvi a voz suave da sra. Aguiar.

— Alô, senhora Aguiar. Posso falar com Arthur?

Chutei as botas para longe e me estendi de costas na cama.

— Lua, que bom ouvir sua voz. Parece que faz tanto tempo que não nos falamos.

— Bem, tenho estado muito ocupada. Acho que o Arthur também.

Gostava muito da sra. Aguiar. Ela era como uma segunda mãe para mim.

— Lua? — Arthur atendeu na extensão enquanto a sra. Aguiar desligava.

— Oi.

Por alguma razão meu coração disparou. De repente Arthur me parecia um estranho.

— O que você vai fazer hoje à noite?

Sabia que ele estava comendo alguma coisa pelo barulho que fazia com a boca e imaginei que seria salgadinho de milho. Ele devorava um saco desses salgadinhos todo santo dia.

— Tenho um encontro com o Chay.

Levei o telefone para perto do armário. Chay viria me apanhar em meia hora, e eu ainda não tinha idéia do que vestir.

— Parece que nossa aposta pode dar em discussão.

Pelo jeito de falar, ele parecia cansado, como se não quisesse conversar comigo.

— É isso aí — respondi, sem conseguir disfarçar o tom de voz, amargo.

— O que você quer dizer com isso?

Ele estava irritado, mas nem me importei com isso.

— Você e Pérola estão ficando muito íntimos. Todo mundo está comentando sobre o extravagante bracelete que você fez questão de dar a ela.

— Era o aniversário dela. E daí?

— Por que você não me contou que estava tão apaixonado por ela, que quis detonar o dinheiro que ganhou trabalhando durante o verão? Eu não significo nada para você para me contar o que anda acontecendo em sua vida?

Estava ficando cada vez mais brava. Arthur poderia ter pelo menos me pedido ajuda para escolher o presente. Tenho um gosto bem melhor que o dele.

— Me desculpe por ter nascido. Achei que você estava ocupada demais, beijando Chay Cara-de-Otário pelos saguões da escola, para prestar atenção em mim.

Agora Arthur também estava nervoso, e nosso papo estava indo para o brejo.

— Ah, e você, que parece ter os lábios grudados nos da Pérola! Já estou achando que vocês são irmãos siameses.

De repente Arthur parou de mastigar.

— Acho que você está preocupada porque vou ganhar a aposta. Você já está se cansando dessa desculpa para ter um namorado e sabe que esse seu namoro não vai durar até o Baile de Inverno.

Peguei uma calça de malha e uma blusa de gola rolê e bati a porta do armário.

— Pois saiba que estou total e absolutamente apaixonada por Chay Suede. Por outro lado, você não saberia o que é amor mesmo se tropeçasse nele. Tudo o que importa para você é um rostinho bonito.

Com a mão livre, tirei a calça jeans. O tempo passava e eu ainda não tinha trocado de roupa. Usava de todo meu autocontrole para não desligar na cara do Arthur.

— Lua, você não me conhece. Parece que passou os últimos três anos em uma nuvem de fumaça.

— Claro que sim — respondi com ironia. — Agora, se você me dá licença, preciso me arrumar para um encontro. Boa tarde.

— O mesmo para você.

Mal consegui ouvir sua voz.

— Tchau.

Bati o telefone no gancho. Quase tinha chorado de raiva, e dentro de dez minutos Chay estaria buzinando lá fora.

Mesmo furiosa com o Arthur, não podia acreditar como nossa conversa tivesse terminado tão mal. Nunca havíamos ficado tão bravos um com o outro e não estava certa de que a gente poderia passar por isso numa boa.

Tentei me animar com a idéia de que ia ter um encontro com Chay, mas as lágrimas escorriam pelo meu rosto. Olhando no espelho, eu me vi pálida, com olhos vermelhos. Poderia estar namorando, mas parecia que tinha perdido meu melhor amigo.

— Você sabe o quanto está bonita hoje? —perguntou Chay, me puxando para mais perto.

Encostei a cabeça em seu peito, ouvindo as batidas de seu coração.

— E você até que não é feio.

Depois de um jantar italiano sensacional, estávamos parados em frente de casa. Chay fora tão atencioso e gentil a noite toda que eu me sentira uma princesa.

— Lua, estou tão feliz por termos nos encontrado. O começo do ano estava uma chatice. Depois que Sophia foi embora, pensei que ficaria sozinho pelo resto da vida. Daí fui para a classe de redação e encontrei você.

— Para mim é coisa do destino.

Olhei para Chay, admirando seus olhos castanhos. Eu estava lealmente vivendo um conto de fadas.

— Para mim também.

A boca de Chay estava tão perto da minha que eu podia sentir suas palavras, em vez de ouvi-las. Passei os braços pelo pescoço dele e puxei-o mais. Ele tocou meu rosto como se fosse de cetim. Acariciei sua nuca com a ponta dos dedos e pude senti-lo estremecer em meus braços.

Por um instante ficamos apenas nos encarando. Depois Chay me beijou, apertando seus lábios contra os meus. Uma espécie de formigamento percorreu meu corpo, enquanto um sentimento estranho de confusão misturada com satisfação tomava conta de mim. Eu tinha aquilo que queria, mas mesmo assim havia essa constante sensação de uma grande desilusão. Por quê?

Ignorei o raciocínio lógico e me apertei mais contra ele, fechando os olhos, sob a luz tênue da lua que iluminava toda a nossa varanda.

Não sei quanto tempo ficamos em pé ali, abraçados como se nunca tivéssemos ficado juntos. Quando finalmente nos afastamos, estávamos os dois quase sem fôlego.

Naquele instante a luz da varanda acendeu e apagou algumas vezes. Minha mãe sabia que estávamos ali fora e achava que eu já tinha aproveitado muito por uma noite. Dei uma risada meio sem graça.

Chay sorriu, passando a mão por meus cabelos e colocando-os para trás das orelhas. Inclinou-se para a frente e me deu um beijinho na testa, e em seguida se abaixou para sussurrar em meu ouvido.

— Vou cantar uma música só para você no baile.

Entrei em casa e percebi que minha mãe discretamente já saíra do corredor de entrada. Fui até a janela da sala e abri a cortina branca de filó. Chay entrara no jipe e seu rosto estava mergulhado nas sombras. Fechei a cortina, que fez um som abafado de assobio.

Enquanto subia as escadas na ponta dos pés, uma parte de mim se sentia nas nuvens. Já tinha conseguido atingir meu objetivo para o último ano da escola. Ainda nem havíamos passado pelas férias e eu me apaixonara pela primeira vez em minha vida. Quem poderia imaginar que a cínica Lua Blanco poderia fazer brilhar os olhos de Chay, como naquela noite? Parecia mesmo um milagre.

Contudo uma outra parte de mim se sentia como se tivesse sido atropelada. Embora pudesse ligar para Mel e contar os detalhes da minha romântica noite com Chay, Arthur se afastara de mim. Se eu não podia partilhar as coisas boas da minha vida com a pessoa que eu considerava a mais importante no mundo, era quase como se elas nunca tivessem acontecido.